CHICA AMORICA Era uma vez um pássaro chamados Chica-Amorica. Tinha o ninho e três filhos no alto de um carvalho. E cantava, feliz da vida. Chegou então a raposa e perguntou: - Quem está a cantar em tão alto carvalho? E logo o pássaro respondeu: - É a Chica-Amorica e seus filhos três. E disse a raposa: - Pois deita para cá um, senão alço o rabo, corto o carvalho e como Chica-Amorica e seus filhos três. Cheia de medo, a avezinha deitou um filho para fora do ninho e toda a noite chorou. No dia seguinte, voltou a raposa e perguntou: - Quem chora em tão alto carvalho? E logo Chica-Amorica respondeu: - É a Chica-Amorica com seus filhos dois, E a raposa tornou: - Pois deita para cá um, senão alço o rabo, corto o carvalho e como Chica-Amorica e seus filhos dois. Sem parar de chorara a avezinha deitou um filho para fora do ninho. Pouco de pois passou por ali o mocho que era compadre da Chica-Amorica. Ao ouvir chorar, perguntou: - Quem esta a chorar no alto deste carvalho? E veio a resposta: - É a Chica-Amorica e seu filho único. Passou por aqui a raposa e disse que cortava o carvalho com o rabo e que me engolia junto com os meus filhos. Já levou dois e não deve tardar para vir buscar o último. O mocho disse-lhe que não se afligisses e ensinou as respostas que devia dar á raposa. E ficou por ali a passear até que apareceu a raposa. E logo veio a pergunta, mas Chica-Amorica tinha aprendido a lição e respondeu que rabo de raposa não corta carvalho. Irritada a raposa gritou: - Isso são conselhos do teu compadre! O mocho apareceu e disse: - Pois! A raposa disse então ao Mocho que pusesse um pé no chão e o outro no ar. Este a sim fez e disse: - Pois. - Agora fecha um olho e abre o outro - ordenou a raposa. Era o que a raposa queria. Engoliu o Mocho e desatou a correr enquanto gritava: - Mocho comi! Mocho comi! O Mocho, que tinha ficado inteiro na boca da apressada raposa, gritou: - Berra mais alto para a minha família ouvir. A raposa abriu muito a boca, o Mocho fugiu e gritou: - A outro, a outro que a mim não! LENDA DAS AMENDOEIRAS Diz a lenda que um poderoso rei mouro andou em guerra por terras do Norte frio onde a neve cobre tudo durante parte do ano. Dessas lutas trouxe consigo prisioneiros e escravos. Aconteceu porém que, entre os escravos, vinha uma jovem princesa linda, de olhos muito azuis, cabelos cor de ouro, pele luminosa e porte altivo de rainha. Pois foi por essa jovem que o rei mouro se apaixonou. Para ele, era a Bela Princesa do Norte. Ela era sua prisioneira, sua escrava, mas o rei, fascinado pela beleza da jovem, deu ordens para que ela vivesse livre no seu reino. "Que não a persigam, que não a molestem", foram as ordens do rei. A bela princesa nórdica agradeceu com um lindo com lindo sorriso e o rei ficou feliz. Algum tempo depois, o rei foi encontra-la em preparativos para regressar á sua terra Natal. Alarmado, o jovem mouro quis saber que razões a levaram a desejar abandona-lo e ao seu reino. A Bela Princesa do Norte disse-lhe que eram muitas as saudades que sentia da sua terra onde nascera. Preso àqueles olhos azuis, logo ali o rei lhe declarou o seu amor e lhe pediu que ficasse para casar com ele pois já não podia viver sem ela. Mais uma vez a Princesa do Norte agradeceu com o seu belo sorriso. Fez-se o casamento; as festas e a alegria pareciam nunca mais acabar. Foi no meio do último dia de festas que o rei deu falta da Bela Princesa que era agora sua esposa. -Procurem-na, procurem-na - dizia o rei desesperado. Acabaram por encontrá-la doente, estendida na cama, quase morta e chorando, chorando.. Vieram médicos e sábios, mas ninguém conseguia curar a jovem que já mal tinha forças para sair da cama. Abatido e desgosto, o rei já não sabia o que fazer para salvar a sua mamada. Foi então Que pediu para falar ao jovem apaixonado um velho prisioneiro que também viera das terras do Norte. E disse que sabia como curar a princesa. Entre desconfiado e esperançoso, rei deixou que o velho falasse com a enfraquecida princesa. O velho era um poeta e começou a falar-lhe das recordações e saudades que ambos sentiam das suas terras do Norte. A Bela princesa do Norte abriu os olhos e sorriu. E a esperança a esperança voltou do coração do mouro. O poeta disse ao rei como podia fazer voltar a alegria à sua amada. Falou-lhe da neve que cobria os campos e caminhos lá ao norte e explicou-lhe que a princesa sentia a falta desse manto branco por onde costumava passear o seu olhar. Aconselhou o pequeno rei a mandar plantar muitas e muitas amendoeiras pois estas, ao florirem, dariam a ilusão de que a neve cobria os campos. O rei assim fez e algum tempo depois ele próprio acompanhou a princesa para que ela olha-se os campos frente à sua janela. -Neve! A minha querida neve! O lindo sorriso e as juras de amor foram o agradecimento. Ambos estavam felizes e o reino encheu-se de amendoeiras com flores brancas que davam à bela nórdica a ilusão de estar na sua terra Natal. O BURRO E O AZEITEIRO Era uma vez um homem que vendia azeite pelas feiras. Tinha um burrinho muito manso e em cima dele punha as bilhas cheias de azeite. Lá iam pelos caminhos de feira em feira. Uma vez aconteceu que iam pelo mesmo caminho dois estudantes. Os rapazes não levavam dinheiro nem para comprar um pão. Quando viram o azeiteiro, esconderam-se e depois seguiram atrás do burro. Com muito cuidado, tiraram a cabeçada do burro e a carga que ele levava. O azeiteiro, entregue aos sues pensamentos, não deu por nada e continuou a arrastar a corda com que prendera o animal. Entretanto, um dos estudantes tinha tomado o lugar do burro e parou, fazendo que o homem também parasse. Ao olhar para trás, o pobre azeiteiro ficou pasmado: no lugar do burro estava um homem! Com uma voz muito mega o rapaz disse: Ah! senhor, quanto lhe agradeço por me ter dado uma pancada na moleirinha! Assim quebrou o encanto que me tinha transformado em burro. Sem estender o que se tinha passado, o azeiteiro não parava de pedir desculpas ao rapaz por lhe ter batido muitas vezes porque era teimoso. Lá soltou o estudante e segui o seu caminho, lamentando a pouca sorte que lhe fizera perder o burro! Quando chegou à feira, começou a procurar um animal que pudesse carregar as bilhas de azeite. E logo viu um que era mesmo igual ao que o acompanhara durante tanto tempo. Desconfiado, o azeiteiro mirou e remirou o burro. Já não tinha dúvidas, aquele era o burro que não era burro e podia passar a ser homem de um momento para o outro. Aproximou-se mais do animal e disse baixinho: -A mim não me enganas tu! Quem não te conhecer que te compre! E lá se foi pela feira à procura de um burro que fosse mesmo burro. A MOURA SALUQUIA Conta a lenda que nas velhas terras de Trás Os Montes, no tempo dos mouros, vivia uma bela jovem chamada Salúquia, prometia em casamento a um poderoso guerreiro mouro. Nas noites de luar a, jovem cantava e encantava os homens que a escutavam. E isso aconteceu a um moço cavaleiro cristão que ficou enamorado pela jovem. Desde essa noite, o cavaleiro cristão só pensava em Salúquia. Queria vê-la e falar-lhe. Enfrentando todos os perigos, o jovem desfardou-se de mouro para tentar se aproximar da bela moura. Conseguiu entrar no castelo onde Salúquia vivia e encontrou-a nos jardins. Assustada pela presença de um desconhecido que não parava de dizer que a amava, a jovem moura só conseguia responder que estava noiva de um guerreiro escolhido pelo seu pai. Mas as palavras e os olhos doces do cristão prenderam a jovem. o cavaleiro afastou-se, mas não parava de dizer: - Eu voltarei! Eu voltarei. Entretanto no meio dos cristãos, corria a noticia de que o temido guerreiro, noivo de Salúquia vinha a caminho para levar a jovem. logo se preparou um ataque ao castelo que se resistia às armas da cristandade. Os guerreiros iriam disfarçados de mouros e ao cavaleiro apaixonado couve vestir-se como se fora prometido noivo de Salúquia. Depois de violenta batalha, os cristãos venceram. Tomada pelo pavor, a jovem moura só pensava em fugir. Mas para onde? Correu para a torre do castelo, mas notou uma figura que a perseguia. Pareceu-lhe que era o guerreiro que seu pai lhe destinara para marido. Desesperada e pensando no seu apaixonado cristão, a jovem subiu à torre, sem reconhecer o doce cavaleiro que não deixava de a chamar: -Salúquia, Salúquia, sou eu que te venho buscar! Mas Salúquia só via nessa figura o noivo que o pai lhe tinha imposto e respondia: -Prefiro morrer! Do alto da torre mais alta se atirou a bela moura. Diz a lenda que uma branca que Salúquia dera ao cristão logo se desfez em sangue. O BURRO EM PELE DE LEÃO Quebrando a peia, Fofo sendeiro Fugiu ao dono, Que era moleiro; Dentro de um bosque , O fanfarrão Achou a pele De alto leão. Em toda a parte Dela vestido Por leão fero Era temido; Homens e brutos O respeitavam, Fugiam logo Que o divisavam. Mas da orelhas Uma pontinha De fora ao burro Ficado tinha; Foi vista acaso Pelo moleiro, Que julgou logo Ser o sendeiro. Indo-lhe ao lombo Com um cajado, Puniu o arrojo Do mascarado; Do tolo rindo, Despiu-lhe a pele, Pôs-lhe uma albarda E montou nele. Tal entre os homens Mil se conhecem, Os quais são uns, E outros parecem. Despem-lhe a pele Que os faz troantes, Ficam sendeiros Como eram dantes. OSSOS DO OFICIO Um vez uma besta do Tesouro Uma besta fiscal, Ia de volta para a capital Carregada de cobre ,prata e ouro, E no caminho, Encontra-se com outra carregada De cevada .Que ia para o moinho. Passa-lhe logo adiante Largo espaço, Coleando arrogante E a cada passo Repicando a choquilha, Que se ouvia distante. Mas salta uma quadrilha De ladrões, Como leões, E qual mais presto Se lhe agarra ao cabresto. Ela reguinga e dá uma sacada, Já cuidando Que dispersava o bando; Mas, coitada! Foi tanta a bordoada,. Que exclamava enfim A besta oficial: «Nunca imaginei tal! Tratada assim... Uma besta real! Mas aquela, que vinha atrás de mim, Porque a não tratais mal?! -Minha amiga, cá vou no meu sossego: Tu tens um belo emprego; Tu sustentas-te a fava, e eu a troços; Tu lá serves EL-Rei, e eu um moleiro; Eu acarreto grão, e tu dinheiro: Ossos do ofissio... que não há sem ossos O RATO Das curvas unhas de terrível gato Por milagre escapando-se ligeiro, No atulhado armazém de um merceeiro Foi asilo buscar pequeno rato. Pilha de seis de fundo e vinte de alto De queijos parmesões subia ao tecto, E atraído de cheiro tão selecto, Lá trepa o fugitivo em salto e salto. Num queijo que à parede mais se unia, Lá começa a roer, e em pouco espaço Um buraco enlapou, que nada escasso Cubículo e sustento lhe exibia. Ora dormindo, ora manducando, Ali vive tranquilo e sem cuidado. «Do mundo -diz - estou desenganado, E quero ir minhas culpas expiando!» Que me dizes, leitor, ao tal ratinho? Assim vivendo à custa dos patetas, Nesses conventos regalões roupetas Da salvação procuram o caminho. O LEÃO Uma ovelha, uma cabra e uma novilha Trataram c'um leão Fazer igual partilha Da caça que apanhasse no sertão. Um veado caiu No laço que armou a cabra esperta. Mandou ela chamar os associadas; Veio o leão, rugiu, Fez do preso animal quatro bocados, E disse: «A conta é certa; Pertence-me o primeiro. por me chamar leão; O segundo quinhão, Também, por ser valente. E se alguém tocar no quarto, Dá-me um banquete mais farto... Prova-me as garras e o dente!» O LEÃO E O MOSQUITO Vai-te, insecto mesquinho e vil na terra!» Depois de assim ter dito O leão ao mosquito, Este lhe declarou cruenta guerra: «Pensas tu que por seres rei dos bichos Tua audácia tolero? Mais força tem o boi e, quanto quero, Sujeito-o a meus caprichos!» Diz, e toca a avançar; foi o herói e o trombeta na batalha. Zumbe em torno ao leão, tanto o atrapalha, Que o faz desesperar Ao longo põe-se um pouco; Depois, salta-lhe em cima do cachaço E torna-o quase louco. A fera c´o rugido atroa o espaço. De ouvir o horrendo grito Seus ecos prolongar atroadores, Tremem os animais dos arredores; Tudo obra de um mosquito! O insecto pequenino, ousado e pronto, Ora ao dorso lhe salta, Ora as ventas lhe saltava. A raiva do leão sobe de ponto: Co´a cauda açoita os flancos, Com o olhar de ameaça E, rugindo duríssimo arrancos, com as garras a si se despedaça, Té que, de fatigado, Cai, fica estatelado! O insecto de combate sai com glória, A mais alta e completa, E na mesma trombeta Em que a avança tocou, cantou vitória, Mas, proclamando ao mundo esta façanha Não vista e desmedida, Na teia duma aranha Cai, fica embaraçado e perde a vida! A fábula vos diz que os inimigos Nunca deveis considerar somenos; E que pode o que escapa a grandes p´rigos Não poder escapar aos mais pequenos O LEÃO QUE VAI À GUERRA Tendo o leão na ideia certa empresa Fez conselho de guerra; E a todos animais mandou aviso Por seus régios alcaides Cada um por seu teor, entrou no alvitre; Ás costas o elefante Levar quantos petrechos importasse, E pelejar, como usa, Para os assaltos, o urso aparelhar-se; Engenhar-se o raposo; A ter inteligências no inimigo, E diverti-lo o mono Com suas mogigangas. Alguém disse Que despedidos fossem; Por boto o burro e por medrosa a lebre. «Oh. não! - Disse o monarca - Quero emprega-los; nem completo fora Sem eles nosso exercito De trombeta, que espante, sirva o burro E a lebre de correio.» Do mais ténue vassalo o rei prudente Tira proveito sabe; Todo o talento emprega; nada é inútil Onde o bom senso lavra O BÊBADO Nem medo nem vergonha contrariam A natural tendência. O conto que se segue Tem, neste caso, a marca da evidência. Um devoto de Baco arruinava-se Por causa da goela; De força andava de baldo, e de pecúnia... Nem sombras na escarcela. Um dia em que perdera a tramontana Bebendo a bom beber, Numa espécie de tumba Fê-lo a esposa meter. Quando ele, enfim, saiu da raposeira, Viu todos os sinais que indicam a morte, A lâmpada, a mortalha...«ó Deus, que é isto?... Fiz viúva a consorte?» Esta, em trajes de Parca disfarçada, Do marido se abeira: «Quem és?» - « Eu sou da lúgubre morada A eterna despenseira. Dou de comer à farta aos que repouso No reino escuro têm.» E o marido a bradar muito aguçoso: «E que beber, não vem?» O LOBO E O GROU Vendo -se o lobo engasgado C'um osso, e muito oprimido, Para o tirar, aos mais brutos Foi cometendo partido. Persuadido o grou c'os juras, O dilatado pescoço Pela goela do lobo Meteu, e tirou - lhe o osso. Pedindo - lhe o prémio: «Ingrato - Disse - que te hei - de pagar? Não te basta de meus dentes Salvo o pescoço tirar?» O pássaro prisioneiro Na gaiola empoleirado, Um mimoso passarinho Trinava brandos queixumes Com saudades do seu ninho. «Nasci para ser escravo (Carpia o cantor plumoso), Não há ninguém, neste mundo, Que seja tão desditoso. Que é do tempo, que eu passava, Ora descantando amores, Ora brincando nos ares, Ora pousando entre flores? Mal haja a minha imprudência, Mal haja o visco traidor; Um raio, um raio te abrase, Fraudulento caçador! Em que pequei? Porventura Fiz-te à seara algum mal? Encetei, mordi teus frutos, Como o daninho pardal? Agrestes incultas plantas Produziam meu sustento, Inútil aos que se prezam Do alto dom do entendimento... Do entendimento! Ah malignos! Vós, possuindo a razão, Tendes de vícios sem conto Recheado o coração. Ah! Se a vossa liberdade Zelosamente guardais, Como sois usurpadores Da liberdade dos mais? O que em vós é um tesouro, Nos outros perde o valor? Destrói-se o jus do oprimido Pela força do opressor? Não tem por base a justiça, Funda-se em nossa fraqueza A lei, que a vós nos submete, Tiranos da Natureza. Em ofensa das deidades, Em nosso dano abusais Da primazia, que tendes Entre os outros animais. Mas ah triste! Ah malfadado! Para que me queixo em vão? Que espero, se contra a força De nada serve a razão?» Aqui parou de cansado O volátil carpidor; Eis que vê chegar da caça O seu bárbaro senhor. Trazia encostado ao ombro O arcabuz fatal, e horrendo, E alguns pássaros no cinto, Uns mortos, outros morrendo. Das penetrantes feridas Ainda o sangue pingava, E do cruento verdugo As curtas vestes manchava. O preso vendo a tragédia, Coitadinho, estremeceu, E de susto, e de piedade Quase os sentidos perdeu. Mas apenas do soçobro Repentino a si tornou, Cos olhos nos seus finados Estas palavras soltou: «Entendi que dos viventes Eu era o mais infeliz: Que outros têm pior destino Aquele exemplo me diz. Da minha sorte já agora Queixas não torno a fazer: Antes gaiola que um tiro, Antes penar que morrer.» O Lobo e a Ovelha Uma ovelha em tempo antigo Estreita unido travou Cum lobo: não sei que santo Este milagre operou. Esqueceu-se do rebanho, Do guardador se esqueceu, E em companhia do amigo Pelos matos se meteu. Ali a que dantes era Qual mansa pomba sem fel, Pelo exemplo estimulado, Aprendeu a ser cruel. Apenas lhe parecia Ter feito já digestão, Eis pronta a comadre ovelha Para a sanguínea função. Se, vendo as preias não tinha O valor de arremeter, Ao menos, depois de mortas, Nelas entrava a roer. Contemplando o fero mestre No pervertido animal Os progressos, que fazia A sua escola brutal, De prazer, e de vaidade Lhe pulava o coração E tinha à sua educanda Cada vez mais afeição. Mas um dia em que esfaimado Saiu com ela caçar, Nem rasto do que buscava Pôde ao menos encontrar. Montes, vales, bosques, tudo Farejou, subiu, correu, Enfim, só farto de vento, Na cova se recolheu. Coseu-se à terra esfalfado, E depois se repousou Para a débil companheira Os cruéis olhos lançou. «Quê! (disse o mau lá consigo) Não há sofrimento igual! Hei-de curtir esta angústia, E morrer por ser leal! A natureza me instiga, E devo dar-lhe atenção: Está primeiro que tudo A própria conservação. Tu, virtude, és atributo Dos homens, dos racionais; Não me pertences: eu sigo Meu instinto, e nada mais.» Nisto, veloz como um. raio, Coa pobre ovelha investiu, E logo dentes, e garras Nas entranhas lhe sumiu. Com trémula voz pergunta Ao desleal a infeliz: «Porque me tiras a vida, Ingrato, que mal te fiz? Que lei o rigor te ordena A que eu motivo não dei?» E ele sôfrego responde: «Tenho fome, a fome é lei.» Destarte cevando a fúria, Não cessou de lacerar, E, antevendo alguma urgência, Os ossos nus foi guardar. Vede, mortais, neste exemplo, Exemplo cheio de horror, O que produz a aliança De um perverso, de um traidor. Se os maus tiverdes por sócios, Eu fico que os imiteis, E que lobos desta castaOu cedo, ou tarde encontreis. |
MACACOS Era uma vez um rei que tinha três filhos e cada um deles se achava com mais direitos ao trono do pai do que qualquer dos irmãos. Então o rei mandou que fossem correr o mundo e depois daria o trono ao filho que lhe trouxesse a melhor prenda. Os rapazes lá partiram por diferentes caminhos, mas todos em busca de prendas valiosas que lhes garantissem a posse do reino. O mais velho encontrou uma espada de outro e logo regressou a casa, conforme combinara com os irmãos. O segundo encontrou um ramo de ouro com uma coroa, também de ouro, tudo do ramo de uma mesma árvore. Tal como o irmão, regressou a casa convencido de que o reino seria seu. O mais novo caminhou, caminhou muito, mas não conseguiu encontrar nada para oferecer ao pai. Um dia chegou a uma cidade onde só haviam macacos e muitos estavam sentados à mesa diante das melhores iguarias. Vieram ter com o príncipe duas macacas., uma velha e outra jovem, que o fizeram sentar e comer com os macacos. Quando o jovem príncipe acabam de comer, a macaca velha ofereceu-lhe uma avelã. Logo depois apareceu uma bela carruagem para onde subiram o príncipe e as duas macacas, acompanhados por uma comitiva de macacos armados. Assim regressaram ao palácio do rei onde já se encontravam os outros irmãos. Todos estranharam a presença dos macacos, mas deixaram que entrassem no palácio. Quando chegou a altura de entregar as prendas, o príncipe mais novo estava muito envergonhado devido à insignificância da sua oferenda e à companhia dos macacos, tanto mais que a macaca jovem não saia de junto dele. O rei elogiou as prendas dos filhos mais velhos, mas, quando pegou na avelã, a macaca mais velha disse que o rei a deveria abrir por suas próprias mãos. Admirado com o pedido, o rei assim fez e no momento em que abriu a avelã, a macaca mais nova transformou-se numa linda princesa e da avelã saíram sete magnificas coroas de ouro. No mesmo instante, a comitiva de macacos tornou-se num exército de garbosos soldados. Avaliando as várias prendas, orei ia tomar a sua decisão. Reconhecida que a melhor prenda era aquela que lhe trouxera o filho mais novo, mas não seria ele a herdar o trono porque já tinha os sete reinos da princesa macaca a quem quebrara o encanto por ter chegado com ela até junto do seu pai. Também não seria o trono para o filho do meio porque este já tinha a sua coroa de ouro. O herdeiro seria pois o filho mais velho que lhe tinha trazido a espada de ouro. Todos ficaram contentes e o príncipe mais novo casou com a princesa que tinha sido macaca e agora era uma linda jovem apaixonada por aquele que lhe quebrara o encanto. Foram felizes para sempre. A LENDA DOS TRÊS RIOS Diz a lenda que três ribeirinhos alegres e saltitantes queriam ver o mar e um dia resolveram meter-se a caminho. -Partimos logo de manhã muito cedo - disse um deles. -Partimos antes do nascer do Sol - disse o outro. -E vamos ver qual de nós chega primeiro ao mar - disse o último. O luar brilhava nas águas adormecidas dos três ribeirinhos. No outro dia, o primeiro a acordar bocejou, agitou as águas e pensou: -Partirei já e assim serem o primeiro a chegar! O ribeirinho que sempre ouvira chamarem-lhe Tajo deixou-se escorregar pela montanha. Como era um ribeirinho muito alegre saudava os povoados e as gentes; a todos dizia adeus e informava: -Vou a caminho do mar; tudo é muito lindo, mas eu quero ver o mar. Adeus, adeus. Brincava com as raparigas que lavavam a roupa nas suas águas claras, escolhia os caminhos mais belos entre pinheiros, oliveiras e pomares. Aos ribeirinhos que encontrava dizia sempre: -Vou para o mar! Venham comigo! Vamos para o mar! E muitos abraçavam aquele ribeirinho aventureiro . Cada vez mais forte, o Tajo seguia feliz e encantado com as terras que banhava. Um dia, uma menina que brincava com as ondas pequeninas chamou-lhe Tejo e ele gostou do novo nome. -Tejo serei para quem me veja. E para os pescadores, ele ficou a ser o Tejo que lhes dava o sustento de cada dia. Para os lavradores, ele é o Tejo que lhes rega as terras. Calmo e divertido, o Tejo chegou ao mar entrou nele de braços abertos. Ali estava, azul e refrescante, o mar que procura por tão longo caminho. Entretanto, tinha acordado outro ribeirinho, aquele que se habituara a que lhe chamassem Ana e sabia que outros que davam o nome de Uadi-Ana, ou seja, Rio Ana. Ainda ensonado, não sabia bem qual o melhor caminho para chegar ao mar. Ora corria para um lado, ora mudava para outro. mas sabia que o desejo mar se encontrava para sul. E lá seguia, entre terras baixas e secas; mais tarde entre rochedos queimados pelo sol. Apercebeu-se então de que o povo o chamava por um novo nome. Agora, para todos, ele era o Guadiana. Fez amizade com o Caia e Degebe, uns ribeirinhos tímidos que também queriam ver o mar e se juntaram a este novo amigo. Um dia, assim em boa união, encontraram o mar, um mar bem azul e águas tépidas e límpidas. O bom do rio Guadiana mergulhou no Oceano Atlântico feliz como uma criança que brinca na areia. Mas não era ele o primeiro a encontrar o Oceano pois o Tejo, que saíra mais cedo, mais cedo encontrara o mar. Enfriorado e dorminhoco, o terceiro ribeirinho só acordou quando o sol já tinha acordado há muito tempo. -Estou atrasado! Já é muito tarde! - pensava o ribeirinho ensonado. Lembra-se de que lhe tinham chamado Durius, mas agora as gentes que o olhavam e lhe chamavam Duero. Corria por terras baixas e secas onde se demorava a observar os campos cultivados. Mas não deixa de pensar -Vou ser o último! É preciso correr! E partiu de abalada esgueirando-se por corredores pedregosos saltando rochedos, correndo apressado, cada vez mais apressado. Nas suas margens subiam encostas cobertas de vinhedos com folhas verdes na Primavera e folhas douradas no Outono, escondendo pesados cachos de uvas maduras. -Quero chegar ao mar, mas vou ser o último, já sei, vou ser o último! - Por isso, o Douro que também é Duero e já foi Durius, acabou por seguir o caminho mais agitado. A CIGARRA E A FORMIGA Tendo a cigarra em cantigas Folgado todo o Verão, Achou-se em penúria extrema Na tormentosa estação. Não lhe restando migalha Que trincasse, a tagarela Foi valer-se da formiga, Que morava perto dela Rogou-lhe que lhe emprestasse, Pois tinha riqueza e brio, Algum grão com que manter-se Té voltar o aceso Estio. «Amiga - diz a cigarra - Prometo, À fé de animal, Pagar-vos antes de Agosto Os juros e o principal.» A formiga nunca empresta, Nunca dá, por isso junta. « No Verão em que lidavas?» À pedinte ela perguntou. Responde a outra: « Eu cantava Noite e dia, a toda a hora: -Oh, bravo - torna a formiga Cantavas? Pois dança agora!» O VELHO E A MORTE Um miserável velho se afligia Com um feixe de lenha que trazia: Jogou com ele ao chão, já de cansado, E chamou pela Morte, agoniando. Aparecendo-lhe esta, perguntava Com que fim tão solícito a chamava. «Rogo-te - disse o velho, de mãos postas - Que me ajudes a pôr feixe ás costas.» O GALO E A PÉROLA Um galo achou num terreiro Uma pérola, e ligeiro Corre a um lapidário e diz: «Isto é bom, é de valia, De milho um grão todavia Era achado mais feliz.» Um néscio ficou herdeiro De um manuscrito, e a um livreiro Vai à pressa e fala assim: «É bom, é livro acabado, Concordo, mas um ducado Valia mais para mim!» O LOBO E O CÃO Não tinha um lobo mais que a pele e o osso. Sinal é que, de orelha arrebitada, Bem vigilante andava a canzoada. Encontra o lobo um dogue forte, grosso, Nutrido, luzidio, uma beleza! Que distraído abandonara a estrada. Sorri-lhe a nédia presa. Saltar-lhe lobo ali, fazê-la em postas O seu desejo fora. Dura empresa! A luta era infalível! Voltar costas Não usam perros quando são valentes, E, mais, os brutos! , dão às vezes cabo Do fero contendor! Diabo! Diabo! Então aquele, com aqueles dentes! Humildade o lobo, pois, encolhe a cauda; Chega-se ao cão; abaixa-lhe a cabeça; Puxa conversa; diz que folga em vê-lo, Que deixe que ele admire, que ele aplauda Topá-lo assim… e com tão bom cabelo!... E rijo! E gordo! Um frade! Uma abadessa! «Esplêndido senhor – o cão responde – De vós depende o ter igual gordura. Fugi dos bosques, onde Por teima da desgraça, De fome e frio só achais fartura, Vós, senhor lobo, e a vossa pífia raça. Dias e dias sem comerem nada! E lá por festas raras, esquecidas, Um petisquinho conquistado à espada, Tragado às escondidas! Aí é certa a morte! Segui… segui meus passos; Tereis outro destino e melhor sorte. - Mas como? – volve o lobo. - Fazer então que devo? – Bagatela: Nem morte de homem, nem de igreja roubo; Simplesmente estas coisas: não ter trégua À santa gente rota, mendicante, Bordão numa das mãos, noutra a tigela, Que vem inda a distância duma légua E já tresanda a essência de tratante. Lamber as mãos ao dono; ser submisso… Dar coca – é o termo próprio – ao dono e a todo Quando bicho-careta houver em casa. Salário apanhareis que vos apraza: Ossos das aves, rodas de chouriço, Restos vindos da mesa, e tudo a rodo! Até uns tagatés em cima disso!» Tendo prestado ao cão atento ouvido, O lobo, coitadinho! , Com perspectiva tal enternecido, Não fugiu nem mugiu, mas fez beicinho! Iam caminho já do provado, Quando o lobo notou que no pescoço O cão era pelado! «Que tens aí? – pergunta em alvoroço. - Nada, que eu sabia. – Nada?! – Frioleira! - Mas afinal o que é? – Ora!... a coleira, Com que à noite me prendem junto à porta… - Prender-te?! – o lobo exclama. Não saias fora, Não corres livre pela terra inteira Quando te dá na gana, e a toda a hora? - Nem sempre. Isso que importa? - Tanto importa, que toda a trincadeira Com que me acenas, um tesouro embora, Por tal preço não quero!» O lobo finda, Põe-se logo na perna, e corre ainda! OS POMBOS Amavam-se dois pombos ternamente Com suave meiguice e amor profundo. Um deles - que loucura! - de repente À casa toma tédio, quer ver mundo. «Que vais fazer? - diz-lhe então Já saudoso o companheiro. Medita, pensa primeiro, Assim deixas teu irmão? Ninguém duvida que a ausência É dos males o maior; Não para ti!... Só se for Que os trabalhos, a inclemência, E essa jogada o p'rigo, Que pretendes arrostar, Possam teu peito mudar Em peito bondoso, amigo. Se mais perto a Primavera Sorrisse alegre, então... vá! Quem te obriga a partir já? espera o zéfiro, espera. Há pouco um sinistro corvo Crocitou, e à nossa raça Agoirou muita desgraça Em tom profético e torvo. Só nas coisas infelizes Doravante pensarei; Em redes, falcões, que sei?... Tiros, flechas e boízes. Ah! - direi quando chover: Meu pobre irmão, coitadinho, Terá ceia, terá ninho, E tudo o que é mister?» Esta linguagem branda e cheia de bondade Enternecê-lo faz; Teve porém mais força a indómita vontade Do viajante audaz. «Não chores; três dias bastam-me - Já vês que é curta a demora - Para matar este férvido desejo que me devora. Quando voltar, com que júbilo referirei por miúdo Aventuras, episódios, incidentes, tudo, tudo! Quem pouco vê, é certíssimo, Que pouco pode contar. Eu te direi que em tal época Achava-me em tal lugar, E tu, enlevado, extático, De me ouvir falar assim, Hás-de julgar - asseguro-te - Que estavas ao pé de mim.» Assim falou, e em pranto de soluços Despediram-se os dois. o viajante A jornada começa. Não distante Da casa, que fugira, carregada Ergue-se no ocidente escura nuvem Que em chuva se desata, e o peregrino Corta os ares em louco desatino, Um albergue buscando, uma pousada. Negro tronco, de folhas quase nu, Se lhe depara então. Voa ligeiro, E mal pôde encontrar de triste ulmeiro Entre a folhagem rara asilo pobre. Depois, quando outra vez se anila o céu, Frio, molhado sai do humilde abrigo, Enxuga as penas, parte, e muito trigo Espalhado no campo além descobre. Outro pombo vê perto, e sem detença Dirige-se p'ra lá. E quando cuida mais, quando mais pensa Gozar com seu igual ventura imensa, Num laço preso está, Que por mão ardilosa, enganadora, Por debaixo do trigo armado fora. O laço era já velho. O prisioneiro Esforça-se, porfia, teima, luta; De tal forma trabalha Co'as asas, bico e pés, que enfim consegue Quebrá-lo, ver-se livre, muitas penas Deixando na batalha. Mas a fortuna má, que o segue, e nutre Contra o pombo infeliz ódio estranhado, Já lhe mostra nos ares um abutre, Que voraz, esfaimado, Mal o avista, a vontade sente acesa De lhe deitar a garra e fazer presa. E o mísero, que traz restos de guita A corta-lhe inda os pés, Um galeote, um criminoso imita Fugindo das galés. Eis que porém naquele mesmo instante, Batendo asa asas longas, Das nuvens arremessa-se gigante Uma águia, e sem delongas Trava-se entre os ladrões rude peleja Por lograr cada qual o que deseja. O pombo, como terceiro, Aproveita do combate; Ergue o voo, e só o abate Quando encontra um pardieiro, De seu bárbaro destino Julgando o pobre animal Que a peripécia final Era este caso mofino. Mas um rapaz turbulento - Não tem compaixão a infância - Uma pedra com tal ânsia Lhe envia, que sem alento Quase o deixa. Maldizendo A sua curiosidade, vai para casa gemendo, Meio coxo, meio morto, E sem outra novidade Chega do ninho ao conforto. O BURRO E O DONO O burro de um hortelão À sorte se lamentava. Dizendo que madrugava Fosse qual fosse a estação, Primeiro que os resplendores Do sol trouxeram o dia «Os galos madrugadores - O néscio burro dizia - Mas cedo não abrem o olho. E porquê? Por ir à praça C'uma carga de repolho, Um feixe de aipo, ou labaça, Alguns nabos e b'rigelas; E por estas bagatelas Me fazem perder ..... O RATO DO CAMPO E DA CIDADE Convida, uma vez, ratinho Mui galante e cortesão, Certo arganaz montesinho As sobras dum perdigão Em guedelhudo tapete Luz o esplêndido talher. São dois, mas valem por sete. Que apetite! que roer! Foi folgança regalada; Nada inveja um tal festim. Senão quando, na malhada, Pilha-os súbito motim. Passos à porta da sala... Param os nossos heróis. E o terror, que pronto os cala, Lança em pronta fuga os dois. Foi-se a bulha. Muito à mansa Vêm-se chegando outra vez. «Dêmos remate à folgança - Diz o da corte ao montês. -Nada. Mas vem tu comigo Jantar amanhã; bem sei Que lá não me gabo, amigo, Desta vidinha de rei Mas ninguém me turba em meio Do jantar; sobra o lazer. E a Deus. Figas ao prazer Que pode aguar o recreio.» A RAPOSA E AS UVAS Contam que certa raposa, Andando muito esfaimada, Viu roxos, maduros cachos Pendentes de alta latada. De bom grado os trincaria, Mas sem lhes poder chegar, Disse: << Então verdes, não prestam, Só os cães os podem tragar!>> Eis cai uma parra, quando Prosseguia o seu caminho, E, crendo que era algum bago, Volta depressa o focinho. O LEÃO VELHO Decrépito o leão, terror dos bosques, E saudoso da antiga fortaleza, Viu-se atacado pelos outros brutos, Que intrépidos tornou sua fraqueza. Eis o lobo c'os dentes o maltrata, O cavalo c'os pés, o boi co'as pontas, E o misero leão, rugindo apenas, Paciente digere estas afrontas. Não se queixa dos fados; porém vendo Vir o burro, animal de ínfima sorte: «Ah! vil raça-lhe diz-morrer não temo, Mas sofrer-te uma injuria é mais que morte!» O amante e a borboleta Na solidão da alta noite Que céus e Terra enlutava, Lauro em seu curto aposento Ao sono os olhos negava. Em mesa, donde esparzia Cândida vela o clarão, Apoiava os frouxos braços, E a turva face na mãos. Tinha absorto o pensamento Nos motivos do seu mal, Nos desprezos de uma ingrata, Nas venturas de um rival. De quando em quando arrancava Das entranhas vãos queixumes, Já pedindo a Amor vingança, Já pedindo a morte aos numes. Leve borboleta entanto Por entre os crebros suspiros, Junto do lume ondeante Vagueia em rápidos giros. Ei-la de espaço em espaço Roçando a flama luzente: Dói-se, mas que evite o dano Cego instinto não consente. Cevando o fatal desejo, Que à crua morte a conduz, Vai, e vem, voa e revoa Embelezada na luz. Sussurro, que faz coas asas, Quando nela a simples cai, Os olhos amortecidos Do terno mancebo atrai. Olha o triste, e vê o efeito Da luminosa negaça, Contempla o crestado insecto, Que já lânguido esvoaça. Dor de ver naquele estado Lhe penetra o coração: Quem ama, franqueia o peito Facilmente à compaixão. «Onde vais, louca teimosa? (Grita-lhe ele) encolhe as asas, Torna em ti, não vês, não sentes Que te destróis, que te abrasas? «E tu com que jus (diz ela) Me increpas porque me mato? Ah! Se em teu siso estivesses, Viras em mim o teu retrato. Se te expões qual eu me exponho, Se no mesmo caso estás, Insano, porque não tomas O conselho, que me dás? Eu e tu vítimas somos Da mais funesta loucura, E esquecemos o perigo, Pasmados na formosura. Ardes nuns olhos, que adoras; Eu nesta luz, que contemplo; Argúi-te, ou não me arguas, Emudece, ou dá-me exemplo.» Profícua moralidade Deve extrair-se daqui: Ninguém reprove nos outros O que não reprova em si. O Corvo e o rouxinol Vinha apontando a serena Precursora do áureo Sol, E entoava em selva amena Um saudoso rouxinol Maviosa cantilena. A voz, que aos ares soltava, A traía o coro alado, Que em torno dele pousava; Assim não fosse escutado De um corvo, que ali morava. Cego de inveja, e furor, Detestando a melodia Do namorado cantor, Consigo mesmo dizia O sinistro, o grasnador: «Que este animalzinho encante Tudo, apenas abre a boca, E que eu afugente, espante Com voz desabrida, e rouca Quanto se me põe diante! Aos homens no meu pregão Infaustos anúncios mando (Diz a vã superstição) E tenho a certeza, em grasnando, Ou pedrada, ou maldição. A raiva em meu peito acesa Com o que escuto se atiça Sofrer vantagem é vileza; Vou-me vingar da injustiça, Que me faz a Natureza.» Eis nisto o bruto agoureiro Para o rouxinol caminha, Mostrando-se prazenteiro, E à delicada avezinha Diz com modo lisonjeiro: «Respira tanta doçura O teu canto, que por certo A branda a penha mais dura; E assim de te ouvir de perto Quero ter hoje a ventura. Não fujas, cantor mimoso, Não te assustes, continua. Como o Céu te fez ditoso! Que linda prenda é a tua! Que voz! Que dom milagroso!» Não tendes astúcia, que sonde O projecto, que o malvado Nas vis entranhas esconde, Já da lisonja tentado, O passarinho responde: «Sejas bem-vindo, que assaz Afortunado me aclamo Em ver que atenção me dás; Pousa aqui sobre este ramo, E a teu cómodo ouvirás.» «Vamos, de novo começa, Que a teus sons o ouvido aplico...» Torna o corvo, e se arremessa, E o torto, negro bico O pobrezinho atravessa. Ele em tamanha aflição Entra a carpir-se da Sorte, E ao invejoso glutão Diz, sentindo já da morte As ânsias, a convulsão: «Que fiz, que te obrigue a tanto? Meigos amores suaves Em doces versos eu canto: Eu sou a glória das aves, Eu sou dos bosques o encanto.» Destarte pediu favor O melhor dos passarinhas, Porém foi vão seu clamor, Que moendo-lhe os ossinhos, Assim gagueja o traidor: «Simples, vaidoso, insensato! Devias ser mais remisso Em produzir teu retrato: Não te defendas com isso, Que por isso é que eu te mato.» As damas e a borboleta Batendo as asinhas leves, Matizadas de mil cores, Ia veloz borboleta Libar o suco das flores. Anelante, cobiçosa, Voou a ameno jardim, E a flor, que tocou primeiro, Foi o cândido jasmim. Da bonina cor de neve Esquivou-se, desdenhosa, Praticando igual desprezo Coa fragrante, idália rosa. Sobre insípido, amarelo Malmequer enfim pousou, E nele o vivo apetite A mitigar começou. Não longe dali jaziam Duas luminosas donzelas, Tais que, a serem três, seriam De Vénus as filhas belas Tendo seguido coa vista Os voos do lindo insecto, Uma delas para a outra Disse com iroso aspecto: «Olha a brutinha! Bem mostra De razão não ser dotada, Deixa o jasmim, deixa a rosa, E do malmequer se agrada!» Ouviu isto a borboleta, Fitou-lhe os olhos, e assim Coa voz que teve algum dia, Perguntou: – «Falais de mim? Supondes extravagante A escolha, que tenho feito? Ah vaidosas! Que não vedes Vosso principal defeito! Despi, loucas, o amor-próprio, E depois conhecereis Que falais contra vós mesmas No que contra mim dizeis. Quem faz mais errada escolha Que a mulher? Sendo a melhor De todas as criaturas, Sempre se inclina ao pior; E só nutre, só conserva Amor firme, ardente, e liso Se encontra no objecto dele O nome da flor que piso.» |